Aviões da CIA. Khadr, 22 anos, da Al-Qaeda para a CIA
Expresso
Edição 1767
Depois de Cabul e Guantánamo passou por Santa Maria, em 2003, a caminho da Bósnia
Tinha 17 anos quando foi capturado. Aceitou colaborar com a CIA a troco da liberdade prometida. Portugal ficará associado para sempre a essa passagem. Abdurahman Khadr saiu da base de Guantánamo, em Cuba, a 6 de Novembro de 2003 para aterrar em território português às 3h08 do dia seguinte, no aeroporto de Santa Maria, nos Açores, a bordo de um «Gulfstream Four», avião com capacidade para 19 passageiros, de matrícula N85VM, pertencente à Ritchmor Aviation. Khadr não chegou a sair do aparelho, mas guarda na memória os momentos passados nos Açores. «Recordo-me do tempo húmido, do homem encasacado que aguardava na pista de aterragem e que entrou para conversar com os agentes da CIA, para logo depois sair, e da enorme placa amarela que indicava: Aeroporto de Santa Maria», revelou ao Expresso. Estava em trânsito, como tantos outros, neste caso a caminho da Bósnia.
Rebeldia de menino
No Afeganistão, em 2001, respondia com a rebeldia típica de um menino contrariado quando o pai o obrigava a treinar-se, todos os dias, nos campos da Al-Qaeda, com o fito de se tornar um bombista suicida. Para ele o futuro que se avizinhava era: «morrer novo». Mas Abdurahman Khadr, a «ovelha negra da Al-Qaeda», desejava algo bem diferente. Longe dali, ao estilo da infância vivida no Canadá, onde nascera em 1984 e de onde partira com a família, no início da década de 90, em direcção ao malfadado país asiático para embarcar na aventura da «Jihad» (guerra santa).
Às escondidas bebia Coca-Cola, via filmes ocidentais e lia autores americanos, tudo pecados fatais para qualquer guerrilheiro, o que não era o caso. Ele era, nem mais nem menos, do que filho de Ahmed Said Khadr, um membro-fundador da organização e amigo íntimo de Osama Bin Laden. «Fomos visita de casa. Os seus filhos eram os meus amigos de rua», conta Khadr ao Expresso.
Inquestionável, a autoridade familiar imperou e não houve lugar para recusas de destino. «Ali ficaria para sempre», pensou naquele instante. Um mês após os atentados de 11 de Setembro, quando a coligação internacional liderada pelos Estados Unidos invade o Afeganistão, o então jovem de 17 anos é capturado com uma arma na mão. Lutou até ser preso. O pai seria abatido dias mais tarde.
Passa então para uma vida de cárcere: nos primeiros meses na base aérea de Bagram, nos arredores de Cabul, depois na inevitável prisão de Guantánamo. Aceitara, entretanto, colaborar com a CIA, a troco da liberdade e da tal vida com que sempre sonhara. Portugal ficará associado para sempre a este momento de viragem, devido à paragem do «Gulfstream Four», em Santa Maria. Entre 2001 e 2005, este mesmo aparelho, um dos utilizados pela CIA, fez 80 voos de transporte de prisioneiros para vários países europeus, africanos e asiáticos. Itália, Alemanha, Roménia, Suíça, República Checa, Marrocos, Afeganistão, Emirados Árabes Unidos, Jordânia e Japão são meros exemplos. Mudou, entretanto, de matrícula, ostentando hoje uma novel N227 SV.
Todos estes dados foram confirmados ao Expresso por vários eurodeputados que trabalham no Comité Temporário do Parlamento Europeu na elaboração de um relatório sobre o assunto.
A Ritchmor Aviation confessou que foi várias vezes requisitada pelos serviços secretos americanos. Os parlamentares europeus garantem que é uma mera firma de fachada e que funciona em exclusividade para a CIA.
Passagem pelos Açores
A discrição do aeroporto açoriano ficou gravada na memória de Kadr pelo «ambiente sereno e o incipiente tráfego aéreo».
Nenhuma fiscalização foi feita à aeronave. O «Gulfstream» em causa tem autorização para aterrar em todas as bases militares norte-americanas espalhadas pelo mundo. Com as Lajes ali à mão, optou-se no entanto por Santa Maria, uma infra-estrutura civil, na qual para aterrar não é necessária qualquer autorização.
Após o reabastecimento, partiriam às 5h35, em direcção à base militar de Tuzla, na Bósnia. Abdurahman tinha pela frente a missão da sua vida, que lhe restituiria a liberdade. Chegado a Tuzla, ao fim de seis dias, partiu para Sarajevo. O objectivo era infiltrar-se na comunidade muçulmana local e identificar um recrutador da Al-Qaeda, há muito procurado pelos serviços secretos americanos. Cumpriu o que lhe ordenaram e regressou ao seu país-natal. No Canadá, as memórias afegãs, «da poeira, das armas, do sangue e da guerra», alimentam-lhe os pesadelos diários. Mesmo assim, confia: «Talvez consiga morrer um pouco mais tarde».
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